As doenças cardiovasculares são a principal causa de morte no mundo, com cerca de 17,9 milhões de vidas perdidas todos os anos, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS). No Brasil, o cenário é igualmente preocupante: dados da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) mostram que, somente em 2023, mais de 400 mil pessoas morreram por causas cardíacas — o equivalente a uma morte a cada 90 segundos.
Embora afete ambos os sexos, a forma como a doença cardíaca se manifesta em homens e mulheres pode ser bastante diferente — e essa diferença tem implicações sérias no diagnóstico e no tratamento. De acordo com a American Heart Association (AHA), as mulheres têm 50% mais chances do que os homens de receberem um diagnóstico incorreto após um infarto, em grande parte porque seus sintomas muitas vezes não seguem o padrão clássico.
Enquanto os homens geralmente apresentam a conhecida dor torácica com irradiação para o braço esquerdo, as mulheres podem ter sinais mais silenciosos: falta de ar, fadiga incomum, dor na mandíbula, náuseas, vômitos, sudorese e até dor nas costas. Um estudo publicado no Journal of the American Medical Association (JAMA) mostrou que 43% das mulheres que sofreram um infarto agudo do miocárdio não apresentaram dor no peito — um sintoma presente em 71% dos homens.
Além disso, fatores hormonais (como o estrogênio, que oferece proteção até a menopausa), diferenças anatômicas (vasos sanguíneos menores) e sociais (menor acesso a cuidados emergenciais ou subvalorização da dor feminina) contribuem para um risco maior de complicações em mulheres.
Por isso, entender as particularidades da saúde cardiovascular feminina é essencial para salvar vidas. Para aprofundar essa discussão, conversamos com o Dr. Sidney Ramos Borges Filho (CRM-SP: 148.574), formado pela Universidade Federal de Juiz de Fora – MG (UFJF) e cardiologista clínico e intervencionista pela Universidade Federal de São Paulo – SP (UNIFESP), que traz esclarecimentos sobre prevenção, diagnóstico e os principais sinais de alerta que merecem atenção. Confira:

ENTREVISTA COM O DR. SIDNEY RAMOS BORGES FILHO
A medicina cardiovascular foi historicamente baseada no perfil masculino. Como essa lacuna, no conhecimento, impactou a taxa de diagnósticos errados ou tardios em mulheres?
“É bem verdade que, num passado não tão distante, existia esse grande viés, com maior participação do sexo masculino, em relação ao feminino, nos grandes estudos. Isso levou a diretrizes e tratamentos baseados em respostas fisiológicas masculinas, sem considerar as diferenças hormonais e metabólicas das mulheres. Sintomas femininos de infarto são, por vezes, atípicos (fadiga, náuseas, falta de ar e dor no pescoço ou costas), e como os antigos protocolos de diagnóstico priorizavam os sintomas clássicos (dor intensa no peito, queimação), muitas mulheres tiveram seus sintomas subestimados ou foram diagnosticadas erroneamente, como ansiedade ou problemas gastrointestinais, por exemplo.
As mulheres receberam menor terapia anti-isquêmica (estatinas, betabloqueadores e antiagregantes plaquetários) após eventos cardiovasculares, foram menos encaminhadas para cateterismo e cirurgia de revascularização, mesmo com doença coronariana diagnosticada e, estudos prévios mostraram que elas tiveram maiores taxas de mortalidade, após infarto do miocárdio, devido ao subtratamento. Por outro lado, atualmente, existe um grande esforço de toda a medicina para uma avaliação igualitária entre os sexos. Assim sendo, o paciente é avaliado de uma forma holística, em todos os seus aspectos biopsicossociais, independente do sexo/orientação sexual. Praticamos, no mundo todo, a chamada “medicina baseada em evidências”, em que os mais diversos tipos de estudos clínicos são utilizados para a formação do conhecimento e das práticas médicas. Hoje os órgãos reguladores destes estudos exigem protocolos muito rígidos, amplos, abrangentes e complexos, que preconizam uma distribuição equalitária entre os sexos, exatamente para que eles reproduzam, da forma mais fiel possível, o “mundo real”.”
Os sintomas clássicos de ataque cardíaco, como dor no peito, são mais comuns em homens. Quais são os sinais menos conhecidos e mais comuns em mulheres, e por que eles ainda são subestimados?
“A chamada Síndrome coronariana aguda (SCA) envolve sinais e sintomas que são ditos como “típicos”, que são os mais frequentes e mais específicos, e os “atípicos”, que são mais infrequentes e menos específicos. Os sintomas típicos incluem dor na região esquerda do tórax ou no centro dele (atrás do osso esterno), em aperto ou queimação, de moderada a forte intensidade, com irradiação para o membro superior esquerdo e/ou mandíbula, iniciada subitamente ou desencadeada aos esforços, associada a sudorese fria, palidez cutânea, mal estar e dispneia (sensação de falta de ar). Este quadro é muito característico de uma SCA e, por isso, mais facilmente diagnosticado, muitas das vezes pelo próprio paciente.
Já os sintomas atípicos, que são menos comuns e menos específicos e, exatamente por isso, mais factíveis de serem confundidos com outras patologias, incluem: dor torácica de menor intensidade e mal localizada; dores em locais incomuns, como em mandíbula (isolada), dorso, epigástrio (“boca do estômago”) ou membros superiores (sem relação com o tórax); dispneia (sensação de falta de ar) isolada; síncope (“desmaio” com perda da consciência); forte sensação de tontura (principalmente em idosos); náuseas e vômitos; sudorese fria, mas não acompanhada da dor torácica típica e fadiga (cansaço) desproporcional ao esforço. Os sintomas atípicos são menos comuns e acometem, principalmente, as mulheres, idosos e diabéticos, mas é importante salientar que, apesar de acometerem mais as mulheres que os homens, são menos comuns que os típicos, mesmo no sexo feminino. Não acredito que eles sejam subestimados na prática médica, no entanto, por serem mais gerais e também encontrados em diversas outras patologias, como gastrite, refluxo gastroesofágico, infecções pulmonares, hipotensão arterial, ou mesmo labirintite, a presença destes sintomas dificultam a realização de um diagnóstico assertivo de SCA. Por outro lado, dispomos de diversos exames complementares que nos auxiliam no diagnóstico e no tratamento da SCA, desde o eletrocardiograma e os marcadores de necrose miocárdica (exames laboratoriais), até a angiotomografia de coronárias e o cateterismo cardíaco.”

A inflamação e os microvasos têm um papel mais relevante na doença cardíaca feminina do que na masculina. Como isso altera a eficácia dos tratamentos tradicionais, como angioplastia e stents?
“A doença coronariana da microcirculação é uma patologia de incidência inferior às da macrocirculação, embora possam ser concomitantes e que acometem, em especial, mulheres e diabéticos. Basicamente, ela acomete os múltiplos pequenos vasos coronarianos, que são as ramificações finais das coronárias. Por serem microvasos não são diagnosticados pelos meios tradicionais, como o cateterismo cardíaco e a angiotomografia de coronárias, o que torna o diagnóstico médico um verdadeiro desafio, fazendo com que o paciente, não raramente, passe por diferentes especialidades médicas até firmar seu veredito. Elas devem ser consideradas quando os sintomas coronarianos estão presentes e associados a provas isquêmicas positivas, sejam não invasivas, como cintilografia com stress, ressonância cardíaca com stress ou ecocardiograma com stress ou a invasiva, a reserva de fluxo coronariano. A mortalidade desta patologia é mais baixa que a tradicional que, por acometer as grandes coronárias, causa infartos mais extensos e graves. Entretanto, a doença da microcirculação não deve ser encarada como uma patologia benigna, uma vez que proporciona um quadro de isquemia miocárdica crônica, o que infere em menor qualidade de vida (devido à angina persistente) e que pode levar à disfunção do miocárdio (insuficiência cardíaca).
O tratamento também é desafiador, pois os microvasos não são factíveis de angioplastia, tampouco implante de stents. Sendo assim, a terapia instituída é a medicamentosa (anti-isquêmica), associada à mudança do estilo de vida (dieta + atividades físicas) que são, na grande maioria das vezes, eficazes e capazes de promover significativa melhora dos sintomas e da qualidade de vida.”

Hormônios como o estrogênio oferecem alguma proteção cardiovascular para as mulheres? Como a menopausa impacta o risco de doenças cardíacas e quais são os marcadores biológicos mais relevantes nesse processo?
“O estrogênio endógeno, que é o produzido pelo organismo da mulher, oferece significativa proteção cardiovascular durante sua fase reprodutiva. Ele contribui para a manutenção da saúde arterial, por meio de vários mecanismos, como a vasodilatação (pelo estímulo à produção de óxido nítrico, um potente vasodilatador, que auxilia a reduzir a pressão arterial), o aumento dos níveis do HDL (“colesterol bom”) e redução do LDL (“colesterol ruim”) e dos triglicerídeos e às suas propriedades anti inflamatórias, com redução da inflamação vascular e do estresse oxidativo (levando a uma importante redução do risco de aterosclerose). Com a menopausa, há uma queda abrupta e significativa nos níveis deste hormônio, o que leva à “perda dos benefícios” previamente citados e, com isso, ao aumento da pressão arterial, alterações do perfil lipídico (redução do HDL e aumento do LDL e triglicerídeos), maior resistência à insulina e risco de diabetes tipo 2, aumento do estresse oxidativo e inflamação vascular, ganho de peso e acúmulo de gordura visceral. E é exatamente por isso que, durante a menopausa, devemos multiplicar os cuidados com a saúde feminina!
Além da mudança do estilo de vida, com a realização regular de atividades físicas e hábitos alimentares saudáveis, o acompanhamento cardiológico também é fundamental! No consultório, o médico será capaz de avaliar e examinar cuidadosamente sua paciente, com medidas da pressão arterial, do índice de massa corpórea e da cintura abdominal e de solicitar importantes exames complementares, sejam os de imagem (MAPA, eletrocardiograma, ecocardiograma, teste ergométrico, dentre outros) ou laboratoriais (colesterol total e frações, triglicerídeos, glicemia, hemoglobina glicosilada, insulina, marcadores inflamatórios orgânicos, como proteína c reativa, homocisteína, lipoproteína A e apolipoproteínas A e B e marcadores de risco trombótico, como o fibrinogênio). Os estudos que avaliaram a terapia de reposição hormonal (TRH), com o estrógeno exógeno, são contraditórios em relação ao benefício cardiovascular, com alguns apontando que eles até podem ter algum benefício, se iniciados precocemente (até 10 anos após a menopausa ou antes dos 60 anos). Entretanto, fica evidente que os benefícios proferidos pelo estrogênio endógeno, em relação ao risco cardiovascular, são muito superiores aos exógenos.”

Além dos fatores genéticos, quais aspectos do estilo de vida contribuem para a diferença na incidência e na gravidade das doenças cardíacas entre os sexos? Há comportamentos que aumentam ou diminuem esse risco de forma significativa?
“O estilo de vida tem um impacto significativo na incidência e gravidade das doenças cardíacas, entretanto alguns fatores afetam homens e mulheres de forma diferente, tanto no risco quanto na progressão das doenças cardiovasculares. O sedentarismo é um dos principais fatores de risco para doenças cardiovasculares e as mulheres, principalmente após a menopausa, quando existe uma aumento significativo dos distúrbios de estresse, nervosismo, ansiedade e depressão, reduzem, de forma significativa, a prática de atividades físicas. O estresse crônico, a ansiedade e a depressão estão associados a piores desfechos cardiovasculares nas mulheres, além disso elas apresentam maior estresse emocional e, frequentemente, demoram mais tempo para buscar ajuda. Mulheres que fumam têm um risco cardiovascular maior do que homens fumantes, possivelmente devido a diferenças hormonais e no metabolismo da nicotina. O consumo excessivo de álcool aumenta o risco de hipertensão arterial e insuficiência cardíaca, entretanto, no sexo feminino, o metabolismo desta substância ocorre de forma diferente, tornando-as mais vulneráveis aos seus efeitos tóxicos. A apneia obstrutiva do sono é uma patologia que impacta negativamente na saúde cardiovascular, aumentando o risco de desenvolvimento de hipertensão arterial, diabetes, aterosclerose vascular, arritmias cardíacas e morte súbita. Entretanto as mulheres, geralmente, são subdiagnosticadas ou diagnosticadas tardiamente e isso ocorre, principalmente, pelos sintomas atípicos atribuídos ao sexo feminino, como fadiga e insônia.”
O diagnóstico e o tratamento de doenças cardíacas ainda são mais voltados para o perfil masculino? Há um viés na forma como essas doenças são estudadas e tratadas, e como isso pode ser corrigido na prática médica?
“Como eu disse anteriormente, o diagnóstico e o tratamento das doenças cardiovasculares já foram amplamente baseados no perfil masculino. Porém os importantes esforços de maior inclusão da medicina moderna, vêm resultando em protocolos de diagnóstico e tratamento cada vez mais individualizados e focados em ambos os sexos. Os comitês dos estudos científicos vêm exigindo uma participação equitativa de mulheres em ensaios clínicos, visando garantir tratamentos eficazes para todos. Obviamente, ainda existe muito a ser feito e práticas para educação e conscientização dos profissionais de saúde devem ser implementadas. O treinamento médico, realizado pelas instituições de ensino, devem abordar mais amplamente os sintomas cardíacos femininos e considerar diagnósticos diferenciais menos mencionados e que são mais comuns em mulheres, como a doença microvascular, a angina vasoespástica e a síndrome de Takotsubo (“coração partido”). Uma vez que esses diagnósticos sejam ventilados, devem ser estimulados a realização de exames mais sensíveis que, apesar de pouco convencionais, tenham a capacidade de diagnosticar tais patologias, como a ressonância cardíaca e, para a investigação de doença microvascular e disfunção endotelial, equipamentos especiais usados no exame invasivo (cateterismo cardíaco), que são a reserva de fluxo coronariano, o ultrassom intracoronário e a tomografia de coerência óptica.”

A inteligência artificial e a personalização dos tratamentos cardiovasculares podem finalmente superar a desigualdade histórica entre os sexos na cardiologia? Quais avanços já estão em curso?
“Sim, a inteligência artificial (IA) tem esse potencial de superar a desigualdade histórica entre os sexos, no entanto, é essencial que esses avanços sejam implementados de forma equitativa e livre de vieses de dados. Esperamos que, com o avanço da medicina de precisão, os tratamentos cardiovasculares se tornem cada vez mais personalizados, garantindo melhores resultados tanto para homens quanto para mulheres.
Existem algoritmos diagnósticos, desenvolvidos por IA, que estão sendo testados para reconhecer padrões cardíacos femininos, reduzindo erros diagnósticos. A Mayo Clinic desenvolveu um modelo de IA capaz de detectar insuficiência cardíaca em estágios iniciais a partir de eletrocardiogramas, com alta sensibilidade para variações entre os sexos. Novos algoritmos, como os desenvolvidos pelo Framingham Heart Study, estão sendo ajustados para incorporar fatores de risco exclusivos das mulheres (variações hormonais, menopausa e complicações obstétricas, como pré-eclâmpsia e diabetes gestacional). Estudos recentes vêm utilizando a IA para correlacionar dados genéticos e metabólicos, com respostas individuais a medicamentos cardiovasculares, permitindo tratamentos mais eficazes para cada paciente. Ainda estamos engatinhando no campo da IA e grandes avanços da medicina cardiovascular, certamente virão.”
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