Luiz Carlos Checchia, renomado dramaturgo e diretor, apresenta reflexões profundas sobre o papel do teatro na sociedade brasileira por meio de sua peça “O Sonho Americano”. Inspirado por anos de estudo sobre o fascismo no Brasil, Checchia utiliza o período da ditadura militar como pano de fundo para discutir questões que ainda ecoam no presente. A peça explora lealdades familiares e tensões políticas, trazendo à tona a complexidade humana em contextos autoritários.
Com um olhar crítico e histórico, o autor enfatiza o papel das camadas sociais e a fragilidade da esquerda, estabelecendo paralelos entre a década de 1970 e o cenário atual. Para ele, o teatro é uma ferramenta poderosa de intervenção pública e reflexão coletiva, ainda que sua mensagem, por vezes, precise atravessar o tempo para encontrar um público mais receptivo no futuro. Confira a entrevista completa:
O Sonho Americano aborda o período da ditadura militar no Brasil. O que o inspirou a revisitar esse período histórico em uma peça teatral?
Tenho estudado a questão do fascismo no Brasil faz alguns anos, cheguei mesmo a fazer um doutorado a respeito. Essa pesquisa, que fiz em nível acadêmico, tenho trazido para a dramaturgia, o que resultou na peça “Brasil: ano zero”, que foi publicada em 2022 pela editora Giostri e, agora, em O Sonho Americano. Assim, essa visita aos anos de chumbo de nossa história é uma forma de mostrar como, a cada período de nossa história há pessoas simples e comuns dispostas a abraçarem projetos políticos autoritários. Isso acontece hoje em dia tanto como aconteceu no passado.
A peça estabelece paralelos entre a década de 1970 e o contexto atual do Brasil. Que similaridades mais impactantes você vê entre essas épocas?
Destaco o papel da pequena burguesia, comumente chamada de “classe média” (embora seja um termo equivocado). É interessante como essa classe oscila entre os projetos políticos, podendo abraçar tanto o progressismo como o conservadorismo, de acordo com as oportunidades de ocasião, mas sobretudo, é no conservadorismo que parece se sentir mais à vontade.
Outro ponto importante é a fragilidade da esquerda em fazer frente a esses momentos. A despeito de toda e coragem e bravura dos jovens que foram à luta contra a ditadura, o fato é que não conseguiram se articular de maneira permanente e nem conseguiram o apoio popular tão necessário às causas que defendiam no passado e que defendem no presente.
O conflito central da peça gira em torno de lealdades familiares e ideologias políticas. Como você desenvolveu as nuances emocionais e psicológicas dos personagens nesse contexto?
Que ótima pergunta. Essas nuances são resultados, creio, da preocupação em não pintar mocinhos ou bandidos, pelo contrário, cada personagem é humanizada. Mas humanizar, neste caso, significa torná-las complexas, movidas por interesses e desejos contraditórios. Um exemplo são as personagens Tobias e Neto, os torturadores. Seria óbvio demais pintá-los como demônios desumanizados, mas aí precisamos lembrar de como a filósofa Hannah Arendt descreveu o nazista Adolf Eichemann, durante seu julgamento em Israel. Ela escreveu que esperava ver um monstro sentado no banco dos réus, mas o que viu foi um senhor frágil, certamente um bom avô. Daí que ela cunhou a expressão “banalidade do mal”. Assim, em O Sonho Americano, um dos torturadores é um bom avô, o outro, um jovem estudioso. São pessoas que em outra ocasião seriam bem vistos e até admirados. Mas são, também, torturadores, são o que de pior a humanidade criou.
A escolha do título ‘O Sonho Americano’ pode parecer contraditória para uma história que se passa no Brasil durante a ditadura. Qual o significado por trás dessa escolha?
Outra ótima pergunta. Porque para as camadas reacionárias da sociedade brasileira os EUA são como um paraíso perdido para o qual se quer voltar. Não os Estados Unidos como é de verdade, mas como é imaginado, mistificado. Lembremos que os EUA têm suas próprias mitologias fundantes, como o destino manifesto e a tese da fronteira. Assim, o que move a peça é o desejo irrealizável de algumas personagens em encontrarem esse paraíso imaginado.
Como foi o processo de preparação do elenco para lidar com temas tão intensos como medo, insegurança e traição, presentes no enredo?
Foi algo quase professoral. Tais sentimentos ou afetos fazem parte dos processos da formação da subjetividade fascista, que foi parte do conteúdo que pesquisei em meu doutorado, concluído ano passado, pela USP. Aliás, tanto “O Sonho americano” quanto “Brasil: Ano Zero”, peça que escrevi em 2022 e que foi publicada pela Editora Giostri, são, de alguma forma, desdobramentos dessa pesquisa. Então, acabamos trazendo tais temas para a sala de ensaios e debatendo-os à exaustão durante um longo período, tanto em aspectos gerais quanto a partir das experiências vividas por cada personagem.
Você acredita que o público brasileiro atual pode se identificar ou refletir sobre temas apresentados na peça, como a repressão e a luta por liberdade?
Não, não creio. Talvez uma pequena parcela do público, mas não o público em si. Pode parecer que eu esteja sendo pessimista com a resposta, mas não é disso que se trata. Talvez por ser historiador eu veja a questão numa perspectiva histórica. Isso quer dizer que nem sempre a mensagem será para as pessoas agora, mas para elas amanhã. Claro que eu quero, como autor do texto, intervir no debate político agora, já, com urgência, mas também entendo que em muitos contextos o debate pode estar um tanto interditado, interrompido. Quando as coisas estão assim, vejo as criações artísticas e intelectuais como mensagens em garrafas jogadas ao mar esperando que elas voltem à praia quando for mais favorável para a escuta.
Você tem uma longa trajetória como dramaturgo e diretor. Como o seu trabalho mudou ao longo dos anos e o que permanece como essência em suas produções?
Eu tinha uma relação muito junguiana com o teatro. Eu via a cena como espaço de circulação para símbolos arquetípicos, um teatro de imagens, portanto, com forte carga simbólica. Creio que a nossa montagem de As Troianas foi o melhor exemplo disso. Mas nos últimos anos tenho me preocupado mais com as palavras, com os significados que carregam, brinco dizendo que atualmente faço um teatro mais freudiano que junguiano. Se antes era a imagem quem materializava significados em cena, atualmente tenho deixado isso para as palavras, para o que é dito e não mostrado.
Mas o que não mudou foi a compreensão do teatro como uma mediação estetizada entre o público e os sentidos profundos que quero apresentar-lhe. O teatro não é um fim em si, mas uma ponte para algo mais denso, mais complexo que talvez seja muito difícil falar por outros meios. Também mantenho a convicção de que o teatro é uma arte pública, de intervenção entre um indivíduo (ou alguns indivíduos) e o público, e a sociedade. Assim, o teatro pode até entreter, e como dizia Brecht, essa é sua primeira função, mas entreter com assuntos sérios e de interesse público.
Além de trabalhar com textos próprios, você também já dirigiu peças de grandes nomes como Shakespeare e Brecht. Como é o desafio de adaptar e dirigir obras tão consagradas em sua carreira?
É uma pergunta bem interessante porque levanta reflexões profundas. A primeira delas que me vem à cabeça é: quando esses autores se tornaram consagrados? Essa consagração é posterior, bem posterior a quando foram escritas ou ao próprio autor. Recentemente reli O Senhor Puntilla e seu criado Matti, do Brecht, e na apresentação da peça é explicado que ela foi escrita para um concurso e, veja só, Brecht sequer foi classificado no certame. Miseravelmente desclassificado como muitos de nós fomos. O que eu quero dizer com isso é que tento lidar com as peças clássicas não como obras consagradas, o que seria para mim bastante intimidador, mas apreendê-las a partir do contexto em que foi escrita. Quando montei Noite de Reis, por exemplo, não pensei em Shakespeare como um dos principais autores do patrimônio cultural ocidental, mas por aquele autor do norte da Inglaterra, com seus quarenta e poucos anos, que escreveu uma sensível comédia sob encomenda e o fez costurando diferentes referências. Antes de serem geniais, Shakespeare, Brecht, Eurípedes eram dramaturgos, e, sem qualquer pretensão, tento dialogar com eles como colegas de dramaturgia.
Quais são os principais desafios e recompensas em desenvolver um teatro de pesquisa, como é o caso da Cia Teatro dos Ventos?
O desafio maior é lidar com a total falta de cultura social a respeito do teatro continuado no Brasil. Com isso quero dizer que nem há políticas públicas para as artes continuadas e nem há por parte dos setores privados o entendimento que elas deveriam ser apoiadas com ou sem mediação estatal. Ou seja, o maior desafio que os artistas enfrentam é a sobrevivência.
Mas as recompensas são imensas. A maior delas, por mais ingênua que possa parecer, é fazer bem feito, em alto nível, ter em cena uma obra que é fruto de experimentação estética. É saber que se está contribuindo com algo para a sociedade. Sei que vivemos num país em que uma “contribuição estética” não é bem o que tem mais valor para o senso comum atualmente, mas creio que um dia terá. Precisa ter se quisermos ser uma grande nação, um dia.
Você tem uma vasta experiência com roteiros para audiovisual e teatro. Quais diferenças você percebe no processo criativo para esses dois formatos?
Parecem muito próximas porque, afinal, são “arte de contar histórias”, são linguagens narrativas. Mas as formas de narrar em cada uma delas são distantes entre si. O audiovisual se faz pela manipulação das imagens no momento do corte e da montagem. Há uma lógica narrativa no audiovisual que está além da relação ator, cenário, roteiro. Já no teatro, a narrativa é feita exclusivamente pela relação ator, cenário, roteiro. Mesmo o que acontece fora da cena, como a morte de Jocasta, em Édipo Rei, só pode ser contada para o público através dos atores em cena. É preciso ter isso em mente quando se escreve para conseguir o máximo que cada uma dessas artes pode oferecer. É claro que tais diferenças não interditam o câmbio entre elas, há muitas obras fruto do hibridismo entre audiovisual e teatro, mas na essência, é disso que se trata.
Ao longo da sua carreira, quais temas ou questões sociais você sente que foram mais recorrentes em seu trabalho e por quê?
Certamente as questões que se desdobram a partir das lutas de classes. Atualmente, como ela se desdobra na atual conjuntura de ascensão do fascismo.
Como você enxerga o papel do teatro no Brasil atualmente, especialmente com o surgimento de novas plataformas de consumo de cultura, como o streaming?
O teatro brasileiro vive, penso, seu momento mais duro. Não digo apenas pelas questões econômicas, que são constantes e atravessam sua história. Mas porque, me parece, vivemos uma imensa crise de pensamento médio. Nunca a ignorância e a truculência foram tão exaltadas como valores, nem a mitologia fundacional estadunidense tão introjetada em nossa cultura. Isso se reflete não somente no nosso teatro, mas na nossa literatura, cinema e no meio acadêmico, por exemplo.
Agora, quando colocamos a lupa sobre a relação entre o teatro e o streaming, a questão fica mais complexa. Me pergunto se tais plataformas são o problema ou parte dele. Veja, em casa assinamos algumas plataformas, as mais comerciais e as mais “culturais”, digamos assim, como Mubi e Belas Artes. Tais plataformas são muito distintas entre si, a mais comercial, por exemplo, veicula bons filmes, mas também os mais superficiais, como aqueles de super herois. Creio, e isso é só uma impressão, que o problema não é o streaming em si, que é uma forma interessante de circulação de filmes, mas a produção e veiculação de conteúdos comerciais, superficiais, narcotizantes etc.
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