“Te Pego”, nova música de trabalho da cantora e compositora Luana Gaudy, é um samba engajado, que junta arranjos de MPB com referências da cultura pop. O samba, viés musical mais explorado por Gaudy em sua produção autoral e em shows ao vivo, serve de base para “Te Pego”, mas é nos detalhes, como uma caidinha para o funk carioca e a letra fácil de cantar que a faixa aborda, de maneira leve e humorada, o papel da mulher de hoje na sociedade e, mais ainda, da mulher no samba.
Fazendo uma inversão de papéis, Gaudy exclui os velhos costumes machistas cantados pelo samba há tantas décadas – como a mulher dona-de-casa, objeto de prazer, incapaz, etc -, e se mostra a pessoa que dá as regras. “Vem dar uma olhada na baliza, posso até te ensinar” e “Enquanto canto meu samba, põe feijão pra cozinhar” são algumas das novas realidades que ela canta, mostrando que o jogo virou.
Para Gaudy, o empoderamento feminino e as questões feministas que invadiram a música globalmente também precisam estar no samba, um movimento que ainda não dá o devido espaço e respeito à mulher. Como conta ela, existe uma dificuldade imensa em tornar-se uma compositora de sucesso no samba, mesmo que na história tenhamos nomes como Leci Brandão, Dona Ivone Lara e Clementina de Jesus, sambistas pioneiras e com composições memoráveis.
Lançada há pouco tempo, a música “Te Pego” é o seu mais recente single, e misturou samba, MPB e referências da cultura pop. Você se considera uma artista eclética quando se trata de navegar por diferentes estilos?
Sim, tenho muitas referências distintas, apesar de o samba ser predominante. Quando eu era pequena, descobri que queria cantar por conta de ter ouvido Cartola, que é uma das maiores referências do samba, por isso o samba tem mais relevância em minha carreira. Mas tenho também muita influência de MPB e outros estilos, inclusive os mais novos. Tenho ouvido muito trap, sempre gostei muito de rap, a cultura pop, o brega tem me pegado um pouco agora, gosto muito do ritmo, a batida do funk também mexe comigo, então gosto de juntar tudo que tem esse poder de mexer comigo.
O samba serviu muito para dar a base de “Te Pego”, pois é um ritmo bastante explorado em seu repertório musical. Como aconteceram os seus primeiros contatos com o estilo e com o ambiente artístico?
Meu contato com o samba, que é minha principal referência, veio dos discos do meu pai, os vinis e fitas K7. Eu ficava sozinha numa casa que era bem grande em que moramos e, nessas tardes de solidão depois da escola, eu pegava os discos e as fitas e ficava ouvindo, e foi assim que fui entrando em contato com o samba e com a música popular. Eu também frequentava o ambiente artístico desde criança, ia sempre à casa do Serginho Leite, que era comediante e um exímio violonista também. Tocava violão de sete cordas. Na casa dele rolavam muitas noites de boemia, madrugadas com meu pai e minha mãe, tive muito contato com esse pessoal da música e da noite já desde essa época, muitos artistas frequentavam essas ‘resenhas musicais’ na casa do Serginho, tanto no bairro de Pinheiros (SP), quanto em Ilha Bela, que era onde costumávamos ir para passar férias. Esses foram meus primeiros contatos com o ambiente artístico, que foi crescendo naturalmente depois.
Você acredita que a música possa ser uma das melhores ferramentas de expressão existentes, juntamente com a atuação e artística?
Com certeza a arte é uma ferramenta perfeita para expressar quem você é, o que você acredita, seus sonhos e desejos, quem você foi e também como você observa o mundo, sua perspectiva. Então, a arte é essencial até para se entender também, quem você é em relação ao mundo e, principalmente, o que você representa.
Em um dos detalhes da música, percebemos também o toque do funk carioca, além de uma letra fácil de pegar. O que a inspirou a compor a música “Te Pego” e quais são os primeiros passos a se definir antes e durante o processo?
“Te Pego” chegou para mim por uma necessidade de dar uma resposta a tantos sambas machistas que existem. Em outras épocas, esses sambas eram tidos como ‘normais’, deixar a mulher em segundo plano, ou como um ser de segunda categoria, o samba traduzia isso nas letras, e com isso veio essa necessidade de, por ser fã do samba, transformar esse cenário não só em um cenário feminista, mas igual para todos. O feminismo não quer ser superior ao homem, ele quer que a mulher seja igual, seja tratada da mesma forma e tenha o mesmo respeito. Antes da composição, era isso que se passava, mas durante o processo de compor a melodia, enquanto os parceiros iam me ajudando com a letra, fomos pensando em outro caminho, características que deixam a mulher em primeiro plano. Durante o processo, também pegamos essa ideia constante do funk que fala muito da mulher ‘sentar’, descer até o chão. Muitos funks tem isso e a gente queria dizer não para isso. Dizer que se a gente colocar um funk, quem vai rebolar é o homem não a mulher, como se os papéis estivessem invertidos.
A canção fez uma abordagem muito importante sobre o papel da mulher na sociedade atual, proporcionando um debate de maneira leve. Em sua opinião, qual é o poder da música na conscientização do mundo atual? É um dever de o artista passar esses tipos de mensagens através de sua criação?
Não vejo como um dever ou obrigação do artista passar mensagens com a música, porém, acho que é um dever passar um sentimento. Acho que é mais que um dever, uma necessidade do artista, passar através da música aquilo que ele pensa que ele acha correto. A verdade do artista tem que ser passada através da música, é essencial.
Se tivesse que escolher uma frase para defini-la, qual seria a melhor?
Não é bem uma frase, mas acho que um título que define a música é que ela é uma ‘gafieirona empoderada’, um samba necessário, acho que essas ideias definem bem.
Apesar das décadas que teoricamente deveriam nos separar do machismo, nossa evolução, como um todo, acabou falhando ao atualizar a maneira de pensar e a visão de mundo das pessoas. As mulheres ainda estão sendo obrigadas a provarem suas capacidades diariamente para além do que os homens consideram. Como enxerga essa situação e como conseguiríamos a mudança que precisamos hoje?
Vejo que muito já foi feito para reduzir e diminuir o machismo, mas extingui-lo está muito longe ainda e, para isso acontecer, precisamos principalmente das mulheres. Ainda vejo muita mulher machista, principalmente das gerações mais antigas, anteriores à minha, e também vejo muita mulher mais nova, jovem, que ainda pensa que precisa ser sustentada pelo homem, que ele é obrigado a gerir a casa enquanto ela cuida dos filhos e afazeres domésticos, e isso é muito triste de ver acontecer. O que podemos fazer para combater o machismo de uma vez por todas é uma boa dose de compreensão, tempo, conversas e exemplos. O que eu pessoalmente faço é mostrar com exemplos no dia a dia, no meu relacionamento pessoal e com pessoas próximas, todos sabem que eu trato do meu dinheiro, da minha vida artística, das minhas escolhas, viagens e tudo mais, todas são escolhas minhas. Acho que com exemplos a gente consegue transformar o mundo sim.
Durante a preparação da sua música, você acabou modificando um pouco o samba, retirando diversos costumes machistas que eram retratados no gênero, tais como a imagem da dona-de-casa e do objeto de desejo e de prazer. O fato do samba tradicional ter abordado essas posições, diminui o seu gosto por ele? Sempre temos tempo para novas mudanças?
Sim, desanima quando a gente vê ou ouve “vem logo, vem curar teu nêgo, que chegou de porre lá da boemia” ou “faz tudo direito, mas não leva jeito pra ser minha musa”. Esses tipos de letras de samba desanimam, mas temos que entender que foram letras feitas em uma época em que eram tidas como comum em um reflexo da sociedade. E agora, em um novo tempo, existe uma necessidade da gente mostrar que não é mais assim, que tudo mudou, evoluiu e os homens têm que entender que tem que pegar o passinho novo dessa dança atual. Sempre é tempo de mudança, enquanto existir gente no mundo vai ter mudança e no samba não é diferente.
De acordo com um depoimento que deu, existe hoje uma dificuldade enorme ao se tornar compositora no samba. Você já sofreu preconceitos físicos em relação às suas composições? Como costuma ser a divisão dos gêneros no público ouvinte das suas músicas?
Parece estranho, mas 70% dos meus seguidores são homens e pode ser que eles venham por outras questões, mas a maioria é de músicos. Tenho muitos seguidores músicos, cantores, compositores e produtores. Talvez até por uma questão machista as mulheres não me sigam tanto, mas as que gostam, se identificam muito com o meu trabalho. Já sofri preconceitos nas entrelinhas, digamos, não foi físico, nem direto. Foi meio que mensagem subliminar, mesmo porque ainda não sou uma cantora de muita expressão. Os cantores e compositores de maior expressão são aqueles que pegam o público feminino, que é quem consome os pagodes, músicas românticas. Como eu falo sobre uma outra realidade, às vezes elas ainda não conseguem aplicar essa mensagem, então talvez não se identifiquem tanto. Talvez “Te Pego” tenha um espírito de vanguarda, que não é assimilado hoje, mas pode ser um grande sucesso mais para frente, quando conseguir ser mais compreendida.
Tanto a sua música como o feminismo nasceram com o objetivo de conseguir igualar os direitos entre os homens e as mulheres. Na sua opinião, porque os homens tanto temem que seus direitos sejam igualados com as pessoas do sexo feminino?
Os homens têm medo de perder território para outros homens, que dirá para mulheres, que, na cabeça deles, são seres inferiores. Então, na cabeça deles, perder para uma mulher é muito pior do que perder para outro homem. Quando a mulher é poderosa, quando ela é segura, independente, ela ameaça o homem. Se for pensar em uma empresa, um homem e uma mulher que ocupam o mesmo cargo, o homem sempre vai ter mais respeito que a mulher no mesmo cargo, o que pode gerar uma série de conflitos.
Durante o projeto, você teve ajuda da dupla de compositores e produtores Rodrigo Leite e Cauique Façanha, além de Leandro Costa do Projeto Samba LeGau. Como foi trabalhar com eles?
O Rodrigo Leite e o Cauique Façanha são amigos de longa data! São mais de dez anos que trocamos figurinhas, frequentamos o samba um do outro, coisa e tal. É uma amizade que veio através do Leandro Costa, meu parceiro, e essa amizade foi crescendo até que um dia gerou essas duas músicas, a “Te Pego” e a próxima que vamos lançar pelo Projeto Samba LeGau (projeto meu e do Leandro Costa). Quando a amizade entre sambistas fica muito profunda, acaba gerando música, não tem como escapar, isso sempre acontece. Me orgulho muito de ter sido a primeira mulher a ter feito um samba com esses compositores, que já chegaram ao mainstream, já colocaram músicas na voz de Thiaguinho, Maria Rita, Diogo Nogueira e até do Padre Fábio de Melo, e isso é motivo de orgulho para uma compositora ainda desconhecida. Sinto-me orgulhosa de ter tido esse espaço e parceria com esses compositores tão talentosos!
Quais são seus planos ainda para esse ano?
Ainda está difícil fazer muitos planos com esse processo todo de pandemia, mas, mesmo assim, planejo o lançamento da música “Clichê”, que é a última do Projeto Samba LeGau, e fazer uma live apresentando todas as músicas deste projeto. E depois pretendo poder apresentar essas músicas ao vivo, nos bares e shows. Além disso, vou continuar escrevendo para um novo projeto que tenho em mente, que tenho chamado de Neo Samba, que é justamente um samba misturado com trap, rap, baião, pagode, MPB, fazer uma mistura mais profunda dos gêneros. Esses são os projetos do ano que tenho por enquanto.
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