Flávio Passos tem conquistado seu espaço nos palcos ao levar para o público uma interpretação intensa e reflexiva em O Sonho Americano, peça que aborda questões fundamentais da sociedade brasileira durante a ditadura militar. O ator, que trocou o jornalismo esportivo pelo teatro, traz para a obra sua experiência de improviso, voz forte e habilidade em lidar com a pressão — características moldadas durante anos em frente às câmeras. Para ele, o espetáculo não é apenas uma performance, mas uma provocação necessária sobre a história e os desafios contemporâneos do Brasil.
Na entrevista, Flávio compartilhou que o processo de preparação foi um dos mais intensos de sua carreira. Os meses de ensaios exaustivos, conduzidos pelo diretor Luiz Carlos Checchia, exigiram dedicação física, emocional e artística. Apesar das dificuldades, ele considera a experiência transformadora. “Sinto que sou um ator e uma pessoa melhor depois desse processo”, revela. Para ele, interpretar um personagem que não compartilha de suas crenças foi um dos grandes desafios, mas também uma oportunidade de explorar novas camadas de sua arte.
Além da complexidade do papel, Flávio destaca o impacto que a peça busca causar no público. “Queremos que as pessoas pensem, reflitam e sintam. Estamos vivendo tempos contraditórios e violentos. O teatro pode ser um espaço de conexão e transformação”, afirma. Entre risos, lágrimas e questionamentos, ele convida os espectadores a embarcar nessa jornada emocional e política, que promete ressoar muito além dos palcos. Confira a entrevista completa:
O que te atraiu no texto de “O Sonho Americano” e como foi o processo de preparação para interpretar seu personagem
Muitas coisas me atraíram no texto da peça. Desde o autor/diretor, até a mensagem em si. Estamos em 2024, já temos 60 anos da instauração da ditadura no Brasil, e ainda vemos pessoas defendendo esse período. Nosso país nunca fez as pazes com sua história. Pouquíssima gente foi responsabilizada, arcou com as consequências de seus atos. Isso falando apenas da ditadura.
O pensamento ultraconservador, responsável por legitimar barbáries, segue em alta. A prova disso é o bolsonarismo, é ver que as pessoas levam em conta figuras esdrúxulas como Pablo Marçal. É só pesquisar a lista de senadores eleitos recentemente, deputados federais, estaduais. É triste. Precisamos conversar sobre a sociedade brasileira, precisamos pensar. E eu acho que a peça tenta fazer isso: levar o público a refletir. Falando do processo, posso afirmar: foi o mais difícil pelo qual eu passei. Pra começo de conversa, nunca tinha ensaiado tanto para fazer um espetáculo. Começamos com 2 ensaios semanais, aumentamos para 3 e encerramos ensaiando 4 vezes. Porque tínhamos indisponibilidades. Não fosse isso, seria de segunda a sexta. Ou mais! Por 5 meses. (Risos)
Além do esforço físico, juntando a rotina de outros trabalhos, do restante da vida; o aspecto financeiro, me deslocando de perto do Museu do Ipiranga para Osasco; o lado artístico foi muito exigente. Eu nunca tinha trabalhado com um diretor como o Luiz. Um cara doce e exigente na mesma medida. Sempre respeitoso, carinhoso e acolhedor, mas igualmente capaz de cobrar, criar, incentivar. Eu sofri. Foi difícil, mas sinto que cresci. Acho que sou melhor ator, uma pessoa melhor, depois desse processo. Abri os olhos para coisas que não me preocupavam muito. E gostei. As primeiras impressões confirmam que ele sempre esteve certo. E eu fico feliz de ter topado o desafio e tentado, de verdade, fazer as coisas acontecerem.
A peça é ambientada nos anos 1970, durante a ditadura militar no Brasil. Como você acha que as temáticas exploradas na peça ressoam com o público atual?
Elas provocam. Já tivemos um final de semana de apresentações, além de alguns ensaios que foram abertos para algumas pessoas. Sempre que conversamos com o público, as respostas são parecidas: como que eles riram de absurdos? Como que se viram concordando com torturadores em determinado momento? São reflexões. E a nossa ideia sempre foi essa: fazer o público sair do teatro pensando, se questionando.
Como é trabalhar com Luiz Carlos Checchia, tanto como dramaturgo quanto como diretor?
É desafiador. Eu conheci primeiro a Camila, a companheira de vida dele, sua amada. E foi através dela que conheci o Luiz. A gente ia trabalhar junto antes, em outro projeto. Uma leitura dramática na USP, ano passado, que acabou não acontecendo. Infelizmente. Desde então, ficou a vontade de fazer algo juntos. Veio a peça de agora. O Luiz, dramaturgo, é um cara muito bom. E o Luiz, diretor, é tão bom quanto. Ele mesmo brinca com essa situação. Penso que, durante o processo, prevaleceu a personalidade do diretor. Visando a estética, o espetáculo montado mesmo. Permitindo a adição de texto, alteração, adaptação. Eu já tinha dito em outra resposta: o diretor é uma pessoa igualmente doce e exigente. Ele aposta muito nesse espetáculo. E tentou extrair o melhor possível do elenco. Um cara muito inteligente, dono de uma capacidade ímpar de argumentar, tem referências, exemplos, para quase tudo que sugere. Foi um prazer viver esse processo com ele.
Qual foi o maior desafio ao interpretar um personagem envolvido em um movimento tão delicado quanto a luta armada?
Então, o maior desafio, pra mim foi não concordar em quase nada com o meu personagem! (Risos) O Neto trabalha contra os comunistas. O objetivo dele é acabar com o movimento da luta armada. Eu, pessoalmente, torço pelo Bento. Que é o antagonista do meu personagem. Então, essa contradição é difícil. Mas é o trabalho do ator, não é? Dar vida a pessoas, histórias. E, muitas vezes, elas não são gostosas pra gente. É normal interpretar alguém diferente de si. E esse foi o grande desafio pra mim.
Há uma grande carga emocional no personagem que você interpreta. Como você equilibra a intensidade emocional e a complexidade política durante a performance?
Eu não estou preocupado com a complexidade política enquanto estou em cena. Na minha opinião, ela tá dada pelas falas, pelos acontecimentos, pela história em si. A minha preocupação é lidar com essa grande carga emocional do Neto. Pois ele é, no meu modo de ver, o personagem mais complexo da peça. O que possui mais camadas, contradições. Ele explode, mas é introvertido. Tem poder, mas também é inseguro. Domina o trabalho que exerce, mas não tem traquejos sociais.
Você trocou o jornalismo esportivo pela carreira de ator. O que te motivou a fazer essa mudança tão significativa na sua vida profissional?
Necessidade. A cada dia que eu olho pra trás, pra minha vida, eu enxergo mais indícios do quanto eu sempre fui artista. Eu sempre quis viver o que estou vivendo hoje. Eu sempre tive a urgência de colocar pra fora o que tenho dentro de mim. Achei que faria isso com uma bola no pé, me tornando jogador de futebol. Foi o plano que eu tracei aos 10 anos de idade. Em um dos banheiros da casa dos meus pais. Durante a minha primeira crise existencial. Eu tentei. O máximo que pude, até meus 20. Aí, eu achei que o meu caminho era no jornalismo esportivo. E foi. Por 11 anos, eu vivi isso. E sinto que venci. Mas sempre me incomodei com a realidade limitante que vivia. Chefes, editores, colegas. Eu tinha que falar apenas sobre futebol. E do jeito que eles queriam. De um jeito aceitável, palatável para o meio. E isso me sufocava. Tanto que, em 2018, eu criei um canal no YouTube. A ideia era essa: falar sobre outros assuntos. Deixar transbordar o que havia de urgente dentro de mim. Mas eu fui ficando no jornalismo. Era o que pagava minhas contas. Eu gostava do trabalho. E fui conquistando coisas: apareci na TV, estava nos principais eventos esportivos do mundo, trabalhei em uma Copa do Mundo, cobri a seleção brasileira, viajei o Brasil, viajei pra fora, fui pra Globo. Apresentei o Globo Esporte! Me tornei o apresentador do programa que cresci assistindo. Morei no Centro Oeste. Voltei pra São Paulo. Morei em Santos, morei na praia. Apareci no Jornal Nacional. Mas aquele incômodo nunca foi embora. Aquela sensação de sufocamento. E foi sentado no meu carro, no estacionamento da TV Tribuna, em uma sessão de terapia que eu falei pela primeira vez: “eu quero virar ator”. E, desde aquele momento, eu não queria fazer mais nada. Eu não aguentava mais falar apenas sobre futebol. Não me entenda errado: eu ainda gosto de assistir. Mas sem compromisso. Sem exclusividade. Sem um jeito limitante de me expressar.
O que você trouxe da sua experiência como jornalista para a atuação? Existem habilidades que você considera úteis em ambas as carreiras?
Trouxe muita coisa. Modéstia à parte, eu sou ótimo em improvisar. O jornalismo me treinou pra isso: o ao vivo. E teatro é isso. Então, eu penso muito rápido. Tive que aprender a responder sob pressão. E mais: fingindo que tá tudo bem. (Risos) E é exatamente isso que um ator tem que saber fazer. O jornalismo me treinou a falar alto, com imposição de voz, articulando bem as palavras. A me acostumar a falar em público. No meu caso, a me acostumar também a falar para as câmeras. Aprendi a lidar com o público. Pois o fã de futebol não é exatamente a pessoa mais carinhosa do mundo. Além de sempre ter claro em mente a necessidade de ser profissional com o que se gosta de fazer. A importância de nutrir boas relações pessoais e profissionais. Chegar mais velho no mundo do teatro também me ajudou a não ligar para besteiras, distrações, que eu sei que podem atrapalhar quem começa muito cedo.
Qual foi o desafio de participar dessa peça e o que ela simboliza para o seu personagem?
O desafio foi dar vida a uma pessoa que eu não concordo. Eu não gosto do Neto. Nunca tomaria uma cerveja com ele. E dar vida a ele foi muito difícil. Não só pelo o que já disse. Mas o Luiz o enxergava bem diferente de mim, fisicamente falando. Então, é um personagem que me exige muito do corpo. Ele é encurvado. Ele é gago! E várias e várias vezes eu saí de ensaios gaguejando. Tive que parar, pensar e falar devagar. Se não… tive medo de virar gago também! (Risos).
Você já tem outros projetos no teatro ou na TV planejados para o futuro?
Estou começando o processo de um outro espetáculo teatral: Hitchcock’s. Uma peça que, inicialmente, será montada no festival Satyrianas. Uma cena curta. Será minha primeira experiência como diretor. Também estou atuando. Tô ansioso. Acho que vai ser legal. Gravei uma novela para a internet também. Estou esperando sair. Quero ver o resultado. Além disso, tô sempre aberto a novos projetos, novos convites. O Luiz mesmo fala em outras possibilidades. Eu tenho o sonho de montar um espetáculo próprio. Além do meu trabalho como criador de conteúdo para as minhas redes sociais. Vamos ver, vamos ver. Sonho, é o que não falta!
Como foi sua transição do esporte e das câmeras da TV para os palcos? Há alguma diferença entre as pressões de um jornalista ao vivo e a de um ator no palco?
A transição foi uma delícia. Amei cada segundo que eu estudei. O Centro de Artes e Educação Célia Helena é um lugar incrível. Tive ótimos professores, pessoas maravilhosas. E, quando pisei em um palco, como adulto, senti que me achei. Pela primeira vez na vida, me senti como um peixe dentro do aquário. As pressões sobre um jornalista de TV são várias! (Risos) Desde o cabelo bem cortado, a barba bem feita, a camisa bem passada, a unha bem cortada… quando era apresentador do Globo Esporte, aí minha calça e o calçado também eram observados! E aí era isso: você era incentivado a criar. Mas, cuidado: é pra criar dentro dos limites do aceitável. Se pisar muito fora, aí, não é legal… pra mim, um artista no corpo de um jornalista, era sufocante! No palco, existem cobranças também. Claro. Mas são diferentes, muito mais aceitáveis pra mim. Por parte do elenco, é o texto decorado, as marcas respeitadas, o figurino e a maquiagem. Tudo que é combinado.
Você sente que o seu passado como repórter influencia a forma como você aborda personagens e histórias no teatro?
Claro! E é isso: cada ator encara o trabalho de uma forma específica. Pois somos pessoas diferentes. Cada um com a sua bagagem, sua experiência, sua vivência. Se colocasse qualquer um dos outros atores do elenco para fazer o Neto, sairia outra coisa. E eu acho isso lindo na arte. Ela é subjetiva. A pessoa importa, a história importa, o passado importa. Pois isso tudo tá sempre com a gente. Pelo menos em um primeiro momento. Quando a gente começa a trabalhar, com as direções dadas, aí a coisa caminha para mais perto do que o público verá em cena.
Deixe uma mensagem para o público.
Venham nos assistir! Nosso espetáculo tá lindo. Fizemos com muito carinho, muito esforço, muita dedicação, muita seriedade. Mas com muita diversão também. Acredito que é possível rir, chorar, ficar com raiva, sentir pena, medo e tudo mais que o coração de cada um é capaz de produzir. Mas o mais importante: queremos que as pessoas pensem. Reflitam. Estamos vivendo um mundo extremamente contraditório, violento, indiferente e egoísta. A verdade já não importa tanto. O que vale é o que pensamos. O que sentimos. Então, venham pensar com a gente! Venham sentir com a gente. Venham viver com a gente!
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