O autismo ou Transtorno do Espectro Autista (TEA), é uma condição neurodesenvolvimental caracterizada por desafios na comunicação, na interação social e por padrões de comportamento repetitivos e restritos. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), aproximadamente 1 em cada 100 crianças em todo o mundo está no espectro autista, embora estudos mais recentes sugiram que essa taxa possa ser ainda maior. Nos Estados Unidos, por exemplo, o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) aponta que 1 em cada 36 crianças foi diagnosticada com TEA.
No caso de uma criança autista, a participação da família e a adaptação do ambiente são fundamentais. Sem esses ajustes, a evolução pode se tornar extremamente difícil – não impossível, mas desafiadora.
Tatiana Serra
Embora cada indivíduo no espectro tenha particularidades únicas, um aspecto comum é a necessidade de um ambiente estruturado e previsível para seu desenvolvimento. Estudos demonstram que o diagnóstico precoce e intervenções adequadas podem melhorar significativamente a qualidade de vida e o desenvolvimento das crianças autistas. A plasticidade cerebral – a capacidade do cérebro de se adaptar e formar novas conexões – desempenha um papel fundamental nesse processo, permitindo que as crianças adquiram habilidades essenciais quando recebem suporte especializado desde cedo.
Os especialistas são unânimes ao afirmar que a participação da família no processo terapêutico da criança autista é essencial. Pesquisas indicam que crianças cujas famílias estão ativamente envolvidas na terapia apresentam avanços mais rápidos na comunicação e interação social, além de uma maior generalização das habilidades adquiridas. Estratégias como a criação de rotinas previsíveis, o reforço positivo e o suporte emocional contribuem para um aprendizado mais eficaz e para a redução de comportamentos desafiadores.
O impacto econômico do TEA também é significativo. Estudos apontam que os custos associados ao autismo podem ultrapassar US$2,4 milhões ao longo da vida de uma pessoa, dependendo do grau de suporte necessário. Investir em intervenções precoces e suporte familiar pode reduzir esses custos, além de proporcionar mais autonomia e qualidade de vida para os indivíduos autistas.

Para aprofundar essa discussão, conversamos com Tatiana Serra, psicóloga, neuropsicóloga, especialista em autismo, autora do bestseller “Autismo: Olhar 360” e CEO do Direcional – Centro de Saúde em ABA. A seguir, ela compartilha sua visão sobre o impacto do ambiente familiar na vida das crianças autistas e estratégias para um melhor desenvolvimento. Confira:
Entrevista com Tatiana Serra
Do ponto de vista neuropsicológico, como o ambiente familiar pode influenciar a plasticidade cerebral e o desenvolvimento cognitivo de uma criança autista?
“Do ponto de vista neuropsicológico, o ambiente familiar é essencial para o desenvolvimento cognitivo de uma criança. Ele funciona como a base, o alicerce desse processo. No caso de uma criança autista, a participação da família e a adaptação do ambiente são fundamentais. Sem esses ajustes, a evolução pode se tornar extremamente difícil – não impossível, mas desafiadora. O envolvimento familiar é indispensável para que a criança desenvolva suas habilidades de forma eficaz. Sem a participação ativa dos pais, o desenvolvimento cognitivo, motor e social da criança fica comprometido. Por isso, é essencial que a família esteja presente, fornecendo suporte e um ambiente adequado para o aprendizado e crescimento.”
Quais mecanismos do cérebro autista tornam o suporte emocional e a previsibilidade no ambiente familiar tão essenciais para o bem-estar da criança?
“O cérebro infantil, independente da criança ter autismo ou não, está em desenvolvimento e ainda não possui experiências no mundo externo que lhe proporcionem segurança. Tudo para ela é uma descoberta: interação, limites, emoções – e esse aprendizado acontece à medida que ela sente e vivencia novas situações. No caso de uma criança autista, esse processo pode ser ainda mais intenso. Se ela tem necessidade de rotina e vive em um ambiente instável, sem horários definidos, pode se sentir constantemente em crise e instabilidade. Para lidar com isso, pode acabar criando seus próprios rituais como forma de sobrevivência. Por outro lado, se for uma criança autista com baixa percepção do ambiente, talvez não se sinta tão afetada, mas também não conseguirá aprender, pois a constante mudança ao seu redor dificulta esse processo.
Por isso, é fundamental proporcionar um ambiente estável e seguro, garantindo um aprendizado confiável. O cérebro de todas as pessoas, não apenas o daquelas com autismo, precisa de previsibilidade. Ele busca economizar energia automatizando processos rapidamente. Em um cenário de instabilidade, essa automatização não acontece, o que faz com que o cérebro permaneça sempre em alerta e estresse. E, quando estamos estressados, não aprendemos – apenas reagimos para sobreviver. Dessa forma, a estabilidade é essencial para gerar confiança e segurança. É importante destacar que o cérebro autista tem mecanismos que demandam suporte emocional específico. Pessoas autistas tendem a interpretar o mundo de forma concreta, o que torna conceitos abstratos, metáforas ou frases muito longas difíceis de compreender. Para facilitar essa previsibilidade e suporte emocional, exemplos práticos são fundamentais.
Podemos utilizar imagens, objetos e demonstrações diretas. Por exemplo, ao ensinar uma criança autista a escovar os dentes, podemos criar uma sequência visual do passo a passo ou escovar os dentes junto com ela para mostrar concretamente como se faz. Um exemplo comum que os pais relatam é a dificuldade da criança em entender expressões como “daqui a pouquinho”. Esse conceito abstrato pode ser concretizado com um painel ou com objetos físicos, como três peças de Lego, representando que, quando elas acabarem, a criança poderá acessar determinada atividade. Adotar esse pensamento concreto na aprendizagem facilita muito o desenvolvimento e a compreensão do mundo para crianças autistas.”
Existe um impacto mensurável no desenvolvimento de habilidades sociais e emocionais quando os pais e familiares participam ativamente das terapias?
“Sim, há um impacto mensurável. Pesquisas mostram que a participação dos pais é crucial para a generalização, aprendizado, retenção e consolidação das habilidades da criança. Os familiares desempenham um papel fundamental ao proporcionar segurança e confiança, validando os aprendizados. Quando pais e mães reforçam e repetem os ensinamentos, a criança aprende de forma mais eficaz e automatiza esses conhecimentos. Por outro lado, quando essa validação não ocorre e não há repetição, a criança pode enfrentar instabilidade no aprendizado. Observamos diferenças significativas entre crianças cujas famílias são engajadas, participam e seguem as orientações terapêuticas e aquelas cujas famílias não aderem às atividades propostas. No primeiro caso, os resultados são mais positivos e rápidos; no segundo, a evolução tende a ser mais lenta e, em alguns casos, quase inexistente. Porém, é essencial considerar que as famílias, muitas vezes, enfrentam um alto nível de estresse. Não basta apenas cobrar sua participação; é necessário oferecer suporte para que consigam cuidar das crianças de maneira adequada. Pais sobrecarregados e estressados têm mais dificuldade em seguir as atividades recomendadas e estimular os filhos no ambiente domiciliar. Portanto, é fundamental criar estratégias de apoio para as famílias, permitindo que elas se sintam cuidadas e fortalecidas. Dessa forma, poderão dar continuidade ao processo de aprendizado e estímulo além do ambiente clínico.”

Quais estratégias neuropsicológicas podem ajudar os pais a lidarem com desafios como birras, crises sensoriais e dificuldades na comunicação da criança?
“A rotina é uma das principais estratégias para promover previsibilidade e segurança. Além disso, ela auxilia no desenvolvimento da flexibilidade cognitiva e do autocontrole, pois, ao saber o que vai acontecer, a criança aprende a lidar melhor com mudanças. Ensinar os pais a gerenciar suas próprias emoções e antecipar situações estressantes também é fundamental, pois impacta diretamente os filhos. No caso de crises sensoriais, é essencial identificar os gatilhos. Será que o desconforto é causado por barulhos altos, determinados toques ou tipos de tecido? Com esse mapeamento, podemos adaptar o ambiente e intervir de forma adequada. Por exemplo, se uma criança tem dificuldade com sons altos na escola, pode-se utilizar um abafador de ruído como recurso externo. No entanto, esse uso deve ser acompanhado de um trabalho para reduzir gradualmente a sensibilidade, evitando a dependência excessiva.
Na comunicação, ferramentas como pranchas de comunicação e sistemas alternativos são fundamentais. Além disso, é recomendável que os adultos utilizem frases curtas e falem pausadamente, facilitando a compreensão e a interação da criança. A estimulação das funções executivas também pode ser feita por meio de atividades cotidianas. Um exemplo simples é envolver a criança na montagem da mesa do café da manhã. Essa atividade trabalha habilidades como planejamento, automonitoramento, atenção, percepção visual e coordenação motora. Por fim, é importante destacar que essas estratégias não são apenas neuropsicológicas, mas envolvem uma abordagem multiprofissional, garantindo um suporte mais completo e eficiente para a criança e sua família.”
No seu livro, você traz uma abordagem ampla sobre o autismo. De que forma os conhecimentos em neuropsicologia que você apresenta na obra podem mudar a forma como as famílias e profissionais lidam com o transtorno?
“Conhecimento transforma, né? As apresentações e os temas abordados no livro trazem conceitos essenciais da neuropsicologia, como funções executivas, planejamento, atenção, flexibilidade cognitiva, entre outros. Além disso, ele oferece dicas práticas de como trabalhar essas habilidades no dia a dia. O livro também inclui um mapa de avaliação neuropsicológica, ajudando os pais a entenderem o que é essencial nesse processo. Dessa forma, eles podem garantir que seus filhos passem por uma avaliação bem estruturada, resultando em um laudo preciso e detalhado. Outro ponto importante são as atividades práticas. No primeiro capítulo, por exemplo, há um estudo de caso sobre uma intervenção feita no ambiente domiciliar, que pode servir de modelo para outras famílias. Além disso, o livro explora o uso do reforço positivo como ferramenta de aprendizado. Em vez de punição, ele propõe a motivação: ao invés de dizer ‘se você não fizer, vai perder tal coisa’, a ideia é incentivar, dizendo ‘se você fizer, ganha mais 10 minutos de videogame’, por exemplo. Com uma linguagem acessível e muitos exemplos práticos, o objetivo é proporcionar às famílias recursos que possam ser aplicados em casa, nas terapias e até mesmo em conversas com professores, tornando o aprendizado mais eficaz e motivador.”
A conscientização sobre o autismo e a participação ativa da família no desenvolvimento da criança são essenciais para promover um futuro mais inclusivo. O acesso a informações e estratégias adequadas permite que pais e cuidadores ofereçam suporte efetivo ao crescimento e aprendizado de crianças no espectro autista.
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