A conscientização sobre o Outubro Rosa e a importância da prevenção do câncer de mama têm se tornado cada vez mais difundidas, mas para mulheres no espectro autista, aderir a essas campanhas pode apresentar desafios únicos. Segundo a neuropediatra Dra. Deborah Kerches, especialista em Transtorno do Espectro Autista (TEA), os déficits na comunicação e na interação social, característicos do TEA, podem afetar diretamente a compreensão e a adesão dessas mulheres às campanhas preventivas. A falta de adaptações específicas para esse grupo compromete a participação efetiva, tornando as iniciativas de saúde pública menos acessíveis.
A hiper-responsividade sensorial é um dos maiores obstáculos enfrentados por mulheres autistas durante exames como a mamografia, que exige toque físico e, muitas vezes, gera desconforto emocional. Dra. Deborah destaca que estímulos como luzes fortes, sons altos e o contato físico intenso podem tornar o exame uma experiência traumática para essas pacientes. A ausência de um ambiente adequado e de profissionais capacitados para lidar com essas particularidades agrava ainda mais a situação, levando muitas a evitarem o cuidado preventivo.
Para que essas mulheres se sintam mais acolhidas, a adaptação dos ambientes médicos é fundamental. A médica sugere medidas como redução de estímulos sensoriais, consultas em horários menos movimentados e a presença de um acompanhante de confiança. Além disso, é essencial que os profissionais de saúde ofereçam uma comunicação clara e empática, explicando cada etapa do procedimento de forma acessível, utilizando recursos visuais e garantindo que a paciente tenha controle sobre o processo.
Outro ponto crucial abordado pela Dra. Deborah é o papel dos familiares no apoio à prevenção. Para mulheres autistas, é fundamental que a abordagem seja feita por alguém de confiança, que transmita informações de forma simples e respeite sua autonomia. Ela também enfatiza a importância de envolver a paciente na escolha do profissional de saúde e na decisão sobre o melhor momento para a realização dos exames, criando previsibilidade e segurança.
A especialista reforça a necessidade de políticas públicas voltadas para a inclusão dessas mulheres nas campanhas de saúde. A criação de materiais acessíveis e o treinamento de profissionais para atender pacientes autistas são passos importantes para garantir que todas as mulheres, independentemente de suas condições, tenham acesso a um cuidado preventivo de qualidade. Confira a entrevista completa:
Dra. Deborah, como o Transtorno do Espectro Autista (TEA) pode influenciar a forma como as mulheres autistas compreendem e aderem às campanhas de prevenção, como o Outubro Rosa?
O TEA é uma condição do neurodesenvolvimento caracterizada por déficits na comunicação e na interação social, que podem impactar significativamente a maneira como as mulheres autistas compreendem e aderem a campanhas de prevenção, como é o caso do Outubro Rosa.
Muitas delas enfrentam dificuldades que limitam a compreensão da importância dos exames preventivos e do autocuidado, incluindo desafios na interpretação de informações de saúde e desconforto ao expressar dúvidas ou preocupações para os profissionais de saúde.
Além disso, é comum que relatem sentimentos de ansiedade e desconforto durante consultas médicas. A falta de adaptações no ambiente clínico, junto com uma comunicação que pode ser pouco clara ou empática por parte de alguns profissionais de saúde, intensifica essa barreira. Como resultado, isso dificulta a confiança e a participação efetiva das mulheres autistas no cuidado preventivo, podendo comprometer a adesão a campanhas de saúde.
Quais são os principais desafios enfrentados por mulheres autistas durante os exames preventivos, como a mamografia, e como essas barreiras podem ser superadas?
Respostas sensoriais atípicas e a rigidez comportamental, comumente presentes no TEA, podem resultar em desafios bastante específicos e significativos. Uma hiper-responsividade ao toque e à luz, por exemplo, pode tornar exames físicos particularmente desconfortáveis ou até extremamente dolorosos. Essa experiência negativa pode levar à recusa ou ao adiamento dos exames.
O toque, principalmente em partes íntimas do corpo, pode gerar desconforto não só físico, mas também emocional. Devido especialmente aos déficits na comunicação e interação social, mulheres autistas podem ter dificuldades em expressar dúvidas, desconfortos ou pedir ajuda durante os exames. Além disso, os procedimentos médicos costumam representar algo “fora da rotina” da mulher autista. E a rigidez comportamental tende a dificultar a adaptação a novas situações, tornando a experiência do exame ainda mais estressante.
Vale destacar que esses são apenas exemplos, pois a forma como cada mulher autista vivencia essa e outras experiências do dia a dia é sempre muito particular e relaciona-se, entre outros pontos, ao nível de suporte que ela se encontra.
Possíveis soluções:
– Ambientes mais calmos, com iluminação suave e redução de ruídos, além de permitir ajustes no tempo e no manuseio dos aparelhos, pode tornar a experiência mais tolerável.
– Acompanhamento de uma pessoa de confiança durante o exame e garantir que a paciente tenha controle sobre o processo, permitindo pausas e discussões sobre seus limites.
– Garantir previsibilidade, por meio de explicações detalhadas, visuais e claras sobre o que esperar do exame.
– O ideal é buscar profissionais/espaços que tenham experiência no atendimento a mulheres autistas, e que reconheçam a importância de uma comunicação clara, respeitosa e de abordagens adaptadas às necessidades de cada mulher.
A hiper-responsividade sensorial é uma característica comum entre pessoas com TEA. Como essa sensibilidade pode impactar a experiência de um exame físico, e que adaptações os profissionais de saúde podem implementar para tornar esse processo menos desconfortável?
A hiper-responsividade é uma “reação aumentada” a estímulos como toque, luzes, sons, temperaturas.
Exemplos de impactos:
– O toque da máquina ou compressão das mamas pode ser doloroso;
– Luzes brilhantes ou ruídos no ambiente de exame podem aumentar a sobrecarga sensorial;
– A presença de várias pessoas em salas de espera ou clínicas pode gerar um excesso de estímulos, como conversas, movimento e proximidade física, o que pode aumentar o desconforto e a ansiedade.
Exemplos de adaptações:
– Reduzir o brilho das luzes, diminuir ruídos e criar um ambiente calmo;
– Permitir que a paciente se familiarize com o ambiente e a máquina antes do exame;
– Explicar cada passo do exame de forma simples e visual, antecipando o que a paciente pode/vai sentir;
– Permitir que a paciente tenha uma pessoa de confiança ao seu lado.
Como podemos melhorar a comunicação entre profissionais de saúde e mulheres autistas para que elas recebam informações claras e acessíveis sobre a importância da prevenção e do autocuidado?
Tudo começa com a conscientização dessas particularidades. É importante que os profissionais de saúde estejam atentos a particularidades do TEA e possam adotar abordagens que garantam clareza e acessibilidade, como:
– Explicar informações de saúde usando termos claros e objetivos;
– Imagens, diagramas, vídeos explicativos e cartazes podem ser ferramentas eficazes para transmitir informações complexas de maneira acessível;
– Antecipar o que vai acontecer em cada etapa de um exame ou consulta, fornecendo um passo a passo do processo;
– Estimular a paciente a fazer perguntas e permitir tempo para que ela expresse preocupações, além de verificar se a informação foi compreendida adequadamente.
Ainda há um longo caminho a ser percorrido, mas vemos hoje muito mais profissionais dispostos a aprender, compreender e acolher o TEA, em diferentes áreas.
O apoio de familiares e cuidadores é essencial para o bem-estar das mulheres autistas. Qual a melhor forma de esses familiares abordarem o tema da prevenção de forma sensível e eficiente?
É muito importante que esteja à frente desse cuidado uma pessoa de confiança dessa mulher autista. Preferencialmente, uma mulher, como a mãe ou irmã, se possível. Isso tende a gerar mais confiança e conforto. Explicar a importância da prevenção de forma simples, sem sobrecarregar com informações técnicas ou alarmantes; manter um tom calmo e empático. Mostrar imagens ou vídeos, ou ainda, um passo a passo, pode facilitar a compreensão. Oferecer suporte sem retirar a autonomia da mulher autista é fundamental. É importante envolvê-la nas decisões sobre a profissional escolhida, data e horário da consulta/do exame etc. É essencial ainda estar disponível para responder a dúvidas e para garantir o máximo possível de previsibilidade sobre a consulta/o exame.
Esses são apenas exemplos, pois as necessidades de cada mulher autista são sempre muito particulares, e a abordagem deve ser adaptada de acordo com cada caso. Como os familiares são as pessoas mais próximas, eles provavelmente serão capazes de conduzir essa orientação de forma mais eficiente, desde que mantenham como premissa um olhar empático.
Existem ferramentas ou estratégias de comunicação alternativa que possam ser eficazes para instruir as mulheres autistas sobre o autoexame e sua importância?
Recursos visuais, como imagens, infográficos e vídeos demonstrativos, são exemplos que ajudam a explicar o processo de forma clara e prática. Estratégias como a Comunicação Aumentativa e Alternativa (CAA), incluindo pranchas de símbolos ou aplicativos, podem facilitar o entendimento e a expressão de dúvidas. Histórias sociais e guias passo a passo com linguagem simplificada também são opções valiosas.
Que tipo de preparação um ambiente médico precisa ter para ser considerado verdadeiramente inclusivo e acolhedor para mulheres no espectro autista?
O controle de estímulos sensoriais, como ruídos altos, luzes fortes e odores intensos, é importante. Ambientes mais calmos, com iluminação suave e menos movimentados, ajudam a reduzir a sobrecarga sensorial, tornando a experiência menos estressante.
A equipe médica também deve ser devidamente treinada. Isso inclui usar uma comunicação clara e direta, respeitar o tempo necessário para processar informações e estar atento a sinais de desconforto ou ansiedade. Além disso, permitir que as pacientes levem acompanhantes de confiança é essencial.
Flexibilidade no atendimento é outra medida importante. Podem ser necessárias consultas mais longas (com pausas, se necessário) e a possibilidade de agendar exames em horários menos movimentados, por exemplo.
Em sua experiência, como as campanhas de saúde pública, como o Outubro Rosa, podem ser adaptadas para alcançar mais efetivamente as mulheres autistas, garantindo que elas se sintam seguras e incluídas?
Colocar essas particularidades em pauta já é um passo importante. A conscientização é o ponto de partida, pois, com profissionais, familiares e a sociedade mais informados, torna-se possível criar campanhas e abordagens adequadas. Isso inclui o uso de linguagem e formatos acessíveis, como vídeos, infográficos e guias visuais que expliquem de maneira clara e simples a importância da prevenção, além de materiais sensíveis a questões sensoriais, que ofereçam sugestões de ambientes e práticas mais confortáveis para mulheres autistas.
A senhora mencionou a importância de uma abordagem individualizada. Poderia compartilhar exemplos práticos de como essa personalização pode ocorrer na prática clínica?
A abordagem deve ser individualizada, reconhecendo que “o que funciona” para uma pode não ser eficaz para outra. É essencial considerar necessidades específicas, nível de suporte e o contexto de cada mulher.
Um cenário ideal seria que a mulher autista fosse encaminhada pela equipe que já a acompanha para profissionais (nesse caso, na área da ginecologia ou mastologia) que tenham conhecimento e experiência com o TEA. Nesse encaminhamento, o profissional já seria previamente informado sobre necessidades de adaptações tanto no ambiente quanto nas interações.
Para algumas, criar um espaço acolhedor e usar comunicação adaptada podem ser medidas importantes; para outras, pode ser interessante oferecer tempo adicional nas consultas, horários de atendimento flexíveis ou opções de atendimento domiciliar, por exemplo.
Como a senhora enxerga o papel de políticas públicas e programas de saúde específicos na melhoria do acesso e da qualidade do atendimento preventivo para mulheres autistas?
As políticas públicas e os programas de saúde específicos são fundamentais para melhorar o acesso e a qualidade do atendimento preventivo e todo o acompanhamento da saúde para mulheres autistas. É essencial que essas iniciativas reconheçam a diversidade das experiências vividas, promovendo abordagens personalizadas que considerem necessidades e níveis de suporte.
É essencial, inclusive, que as mulheres autistas tenham voz ativa, sendo consultadas para o desenvolvimento de abordagens cada vez mais assertivas. Nesse contexto, podemos almejar treinamentos para profissionais de saúde, focados em sensibilização e compreensão do TEA, além da criação de campanhas de conscientização com linguagem acessível e formatos variados. A articulação entre diferentes setores de saúde é fundamental para permitir uma abordagem integrada, facilitando o encaminhamento e o acompanhamento.
Sobre a entrevistada
Dra. Deborah Kerches é uma neuropediatra especializada em transtorno do espectro autista (TEA), com mestrado em Análise do Comportamento pela PUC-SP. É pesquisadora nas áreas de Treino de Comunicação Funcional (FCT) e TEA feminino, e pós-graduada em psiquiatria pelo Cenbrap. É palestrante internacional e autora de best-sellers sobre autismo, como Compreender e Acolher. Além disso, é madrinha do projeto social Capacitar para Cuidar em Angola e possui certificação em Professional Crisis Management. Coordena pós-graduações e atua como conselheira da Reunida, integrando sociedades especializadas em neurologia e psiquiatria infantil.
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