O Setembro Amarelo, campanha nacional de conscientização sobre a prevenção ao suicídio, tem como objetivo centralizar discussões a respeito da saúde mental, incentivando a busca por ajuda e a valorização da vida. A importância desse tema não pode ser subestimada, especialmente em tempos em que a depressão e outros transtornos psíquicos têm atingido números alarmantes. Falar sobre saúde mental, acolher e ouvir quem precisa são ações fundamentais para promover a vida e ajudar quem enfrenta dificuldades. No entanto, além de campanhas como essa, ouvir histórias de superação pode ser uma grande fonte de inspiração e esperança.
Airys Kury, artista visual com uma trajetória marcada por desafios e recomeços, compartilha sua experiência de vida e como a arte foi uma ferramenta de cura em meio às adversidades. Em uma entrevista exclusiva, ele abre o coração sobre o processo de perda de todos os seus bens, a descoberta do HIV e a superação de quatro tentativas de suicídio. Sua história é de resiliência, mostrando que é possível transformar a dor em uma nova forma de viver. Ao se aprofundar em sua saúde mental, Airys encontrou na arte um caminho para a reconciliação consigo mesmo e com a vida.
Nascido em uma família de classe média alta no Pantanal mato-grossense, Airys passou por grandes perdas, que o levaram a uma mudança radical de vida. Ele enfrentou a falência e uma série de problemas de saúde, incluindo obesidade mórbida e doenças mentais. No entanto, foi o diagnóstico de HIV que, de maneira surpreendente, o impulsionou a buscar uma vida com mais propósito. Ele conta como essa notícia o fez se reconectar com sua essência e abandonar o excesso de materialismo, focando em seu bem-estar físico, mental e espiritual.
A arte, para Airys, foi fundamental nesse processo de cura. Ele acredita que a expressão artística pode revelar sentimentos e pensamentos que as palavras muitas vezes não alcançam. Ao mergulhar em suas criações visuais, ele conseguiu abandonar a medicação psiquiátrica e dar um novo sentido à sua existência. Para ele, a arte vai além da estética; ela toca nas profundezas da alma, permitindo a expressão de emoções e memórias que ajudam a construir e ressignificar a própria vida.
No contexto do Setembro Amarelo, a experiência de Airys Kury serve como um lembrete poderoso de que, mesmo em meio a crises profundas, é possível encontrar luz. Sua mensagem para quem está enfrentando dificuldades emocionais é clara: buscar ajuda, falar sobre os sentimentos e não ter medo de enfrentar as próprias dores são passos importantes para a recuperação. A sua jornada de superação é uma prova de que, por meio da arte e da autoconsciência, é possível reencontrar a força e o equilíbrio necessários para seguir em frente. Confira a entrevista:
Você poderia compartilhar um pouco sobre sua trajetória e como enfrentou a perda de todos os seus bens?
Nasci em uma família de classe média alta, no coração do Pantanal de Mato Grosso: Cáceres – MT. Meus pais foram muito bem-sucedidos em seus negócios, mas eram culturalmente muito humildes, empresários locais que, mesmo sem ter estudado, alcançaram um padrão econômico-financeiro muito robusto para a realidade local. Mesmo assim, não éramos da classe social dos ‘senhores feudais’, os donos das terras e dos rebanhos de milhares de cabeças de gado. Assim, por um ‘acidente familiar’, fui aos 5 anos de idade estudar em uma escola de elite, colégio interno, em São Paulo, cidade onde fixei minha residência desde os meus 20 anos, após o falecimento dos meus pais.
Ao contrário dos meus pais, que nasceram pobres de cultura e dinheiro, eu nasci ‘rico’ em dinheiro e me tornei ‘pobre’ aos 60, vivendo hoje em uma residência pública. No entanto, sou rico culturalmente, simplesmente um ex-tudo: ex-rico, ex-obeso mórbido, ex-deprimido, quase encurtando minha estadia na Terra. Enfrentei a falência de frente, passando por inúmeras superações. Por excessos de ego e vaidade, cheguei a ser ex-morador de rua, mas com a graça de um imperador.
Como o diagnóstico de HIV impactou sua vida e sua perspectiva sobre a saúde?
Foi incrível: impactou positivamente eu ir em busca do ser, em abdicar do ter. Foi exatamente aí que eu fui ao encontro de mim mesmo: definitivamente, saúde física, mental e espiritual é o rolê.
Esse tal rolê pode indicar um caminho para a salvação da vida dos seres humanos e do planeta Terra. Se liga! Até aqui, avançamos muito na saúde física, com muitos avanços nos saberes e nas tecnologias a favor da saúde do corpo. Pois bem! Devemos estar atentos! Foco agora na saúde mental e espiritual: a solução? Não sei, mas tenho certeza de que, sem a saúde mental, não vai rolar! Um imbróglio louco está sendo nossa existência no planeta Terra: sem saúde mental e sem ‘tesão’ de viver, não há solução. A ausência de saúde mental leva ao adoecimento do corpo, da alma e da Terra.
O processo de superar a obesidade mórbida foi um grande desafio. Como você conseguiu fazer essa transição e que impacto isso teve em sua saúde mental?
Sim! Foi, de fato, um desafio incrível: ‘in’, por ser uma revolução dos hábitos e costumes, e ‘crível’, por ser exequível. Tudo é possível! Ter superado todos os obstáculos foi e continua sendo um ato de fé. Andar até aqui é com coragem: eu ando com fé e, mesmo falhando em alguns momentos, sigo avante e em frente com fé. Andar com fé eu vou; a fé não costuma fazer ‘Gilberto Gil’.
Quais foram os principais obstáculos que você enfrentou ao longo dessa jornada de superação e como você os superou?
Foram vários desafios! Vou citar os mais importantes e relevantes para a minha história: quatro tentativas de suicídio, incluindo duas quase fatais, lidei com HIV, obesidade mórbida, depressão profunda, esquizofrenia, bipolaridade e ciclos de manias. Durante três décadas, passei por uma complexa combinação de medicamentos e internações, buscando um conforto que parecia inatingível: 42 anos em sessões de psicanálise e 23 anos em acompanhamento psiquiátrico intensivo (com os melhores da psiquiatria e psicanálise de São Paulo).
No entanto, a arte visual surgiu como um território de transformação, permitindo que eu abandonasse a medicação psiquiátrica (mantendo os acompanhamentos periódicos da psiquiatria e as sessões permanentes de psicanálise). Tudo é, foi e será sempre necessário para explorar a vida de uma nova maneira, todos os dias deste aqui e agora: o melhor do mundo.
A arte sempre foi uma forma de expressão para você. Como ela ajudou na sua recuperação e no fortalecimento da sua saúde mental?
Através das imagens secretas do meu trabalho de arte, eu faço arte desde o meu nascimento, com a força da energia da criança em expressão e comunicação. Observando um mundo de palavras que expressam pensamentos, dou sentido ao existir de uma criança e aos interesses: tudo e todas as coisas, desde o comércio até as relações de troca de afetos invisíveis, reforçando a autoridade das coisas, das experiências, do que pode ser atestado. No entanto, nunca se chega às camadas mais profundas, aquelas expressas pelas imagens, que possuem linguagens mais complicadas e até mesmo mais difíceis de decifrar do que as palavras que podemos alcançar com nosso racional. Essas regras distintas permitem decifrar, mas a imagem, no sentido mais profundo, atinge a linguagem do inconsciente: a linguagem mítica, que podemos traduzir para a linguagem racional dos conteúdos do inconsciente expressos pelas imagens. Aí está a beleza da arte: ler as imagens com um sentido diferente do das palavras, que, ao meu ver, podem empobrecer o sentimento do meu fazer ao sentir essa energia mágica da vida, que é utilizada para expressar minha arte.
O que significa para você o Setembro Amarelo e como sua experiência pode inspirar outras pessoas a buscarem ajuda e encontrarem força?
Força aí, leitores, apertem os cintos e vamos lá! Rumo ao dia a dia: amarelo, do Setembro Amarelo, amarelo dos girassois. Sabem por quê? Eu teria no mínimo cinco motivos, mas para evitar excessos, vamos focar na importância da saúde mental todos os dias, não apenas no Setembro Amarelo. Hoje, no dia de sua leitura, é fundamental reconhecer a importância da saúde mental para o planeta Terra.
Convido todos os leitores a prestar atenção e aprofundar o valor e o compromisso com a saúde mental, remodelando pensamentos e ações para atender a essa necessidade. Algumas recomendações de ação e caminhos que utilizei para minha tomada de consciência, reflexão, aceitação, busca de ajuda, tratamento e transformação são mudanças de atitude.
Ao analisar e abordar os riscos, fortalecendo meus processos clínicos e dando atenção à saúde mental — diagnóstico, anamnese e tratamento — aprofundei o valor e o meu compromisso com minha saúde mental e a do planeta. Observo que, ao assumirmos a responsabilidade de nos reorganizar individualmente, estamos contribuindo para a melhoria dos ambientes que influenciam a saúde mental, incluindo nossos lares, comunidades, escolas, locais de trabalho e todas as comunidades que frequentamos. Ao mudar nosso pensamento e reforçar a atenção à nossa própria saúde mental, estaremos apoiando a nós mesmos e, assim, mudando nossos comportamentos, o que pode fazer a diferença.
Você tem algum conselho para pessoas que estão enfrentando desafios semelhantes, especialmente no que diz respeito à saúde mental e física?
Acredito ser difícil dar conselhos, até porque não sou profissional da área da saúde. O que eu sei (do pouco que sei, apesar de ter algum conhecimento sobre minha própria saúde) é que é muito importante considerar os recorrentes alertas da OMS (Organização Mundial da Saúde), que vêm divulgando sistematicamente a necessidade de nos dedicarmos à saúde mental. Em sua maior revisão mundial sobre saúde mental desde a virada do século, neste ano, a OMS forneceu um plano detalhado para governos, acadêmicos, profissionais de saúde, sociedade civil e outros, com a ambição de apoiar o mundo na transformação da saúde mental.
Em 2019, quase um bilhão de pessoas — incluindo 14% dos adolescentes do mundo — viviam com um transtorno mental. O suicídio foi responsável por mais de uma em cada 100 mortes, e 58% dos suicídios ocorreram antes dos 50 anos de idade. Os transtornos mentais são a principal causa de incapacidade humana, jamais observada antes, causando um em cada seis anos vividos com incapacidade. Pessoas com condições graves de saúde mental morrem, em média, 10 a 20 anos mais cedo do que a população geral, principalmente devido a doenças físicas evitáveis. Em 2030, “os números da OMS mostram claramente que o peso da depressão (em termos de perdas para as pessoas afetadas) vai provavelmente aumentar, de modo que, em 2030, ela será sozinha a maior causa de perdas (para a população) entre todos os problemas de saúde”, afirmou à BBC o médico Shekhar Saxena, do Departamento de Saúde Mental da OMS.
Exatamente neste momento em que você, leitor, está lendo esta matéria, eu e mais de 1 bilhão de seres humanos somos portadores de algum ou mais transtornos mentais (o que é o meu caso e da grande maioria). Em 2030, estima-se que metade da população mundial estará afetada.
Quais são os seus projetos futuros e como você planeja continuar usando sua arte para promover a conscientização sobre questões de saúde e bem-estar?
Sobre o futuro, não consigo prever, mas venho, todos os dias, há 20 anos, desde 2004, trabalhando na minha arte. Diariamente, repetindo, refazendo e aprimorando, em processos permanentes, as técnicas e as pesquisas dos temas que me interessam. Como sou extremamente curioso, posso dialogar sobre muitos temas diferentes, naturalmente em profundidades variadas, mas sempre com uma profundidade média. Sem falar com modéstia: estudo muito, desde criança. Tive o privilégio de me interessar e aprender com mestres sábios, intelectuais da literatura, filosofia, gastronomia, medicina, entre outras áreas. Pude estudar com eles fora das escolas e universidades, em paralelo aos estudos regulares. Por muitos anos, mantive uma biblioteca pessoal com mais de 1.500 títulos, além de revistas especializadas de diversos assuntos do mundo todo.
Assim, sinto-me desafiado a escrever meu nome na passagem pela Terra com a minha arte, um projeto para o universo, com o desejo de que ela alcance o mundo todo. Quero que seja lembrado que aqui fiz arte, hoje chamada de contemporânea, e que fiz da minha vida o roteiro da minha arte. Como minha história de vida tem muitos eventos em que a saúde, principalmente a saúde mental, foi e sempre será muito presente, dedico a mim mesmo e a todos que alcançarem minhas obras de arte: a arte salvou a minha vida.
Como você lida com os momentos difíceis e mantém sua saúde mental em equilíbrio?
Eu, pessoalmente, acredito que o equilíbrio e a clareza sobre a vida serem difíceis são fundamentais. Ninguém nunca disse que seria fácil. Há uma imagem que me ocorreu agora em respeito a essa questão da vida, esse incrível milagre: a vida! Uma das maiores angústias do ser humano é a busca pelo afeto. E veja só, a própria fecundação já é um abraço único e exclusivo. Somente um espermatozoide (com raras exceções de mais de um) é aceito para entrar no óvulo e ser abraçado internamente. Por nove meses, normalmente, ficamos abraçados pelo útero, dentro da barriga da mãe. Depois, somos literalmente ‘despejados’ desse abraço único e super confortável, sem aviso prévio, e ainda por cima convidados a deixar essa ‘casa’ pelados! Deixamos tudo, até a roupa do corpo. Nascemos sem nada, a luz acende, a luz da vida, e ainda recebemos um tapa de boas-vindas. Tipo: ‘Acorda, bebê! Bem-vindo ao mundo!’ E assim, somos introduzidos a um mundo de incertezas e desafios.
De lembrancinha desse evento do nascimento, recebemos um presente irônico: a única certeza é o fim. O equilíbrio? Ele vem com a aceitação da dor como parte fundamental da existência. E não há Doril ou remédio infantil para aliviar essa dor da existência humana. Se doi, acredite: você está vivo! Coragem é sempre necessária!
E para finalizar, quero deixar uma mensagem sobre resiliência e esperança: tenham fome de viver e de ser, sem vergonha, medo ou julgamento. Busquem a auto-libertação e o autoconhecimento. Resgatem quem vocês realmente são e o melhor de si mesmos.
Despeço-me aqui dos leitores da Andrezza Barros.
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